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sábado, maio 25

Ministério Público recorre no caso do atropelamento de ciclistas

Na quinta-feira, 23, a partir de solicitação do Procurador de Justiça Mário Cavalheiro Lisboa, a Procuradoria de Recursos interpôs recurso especial da decisão da 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do RS, que, nos autos do Processo nº 70053872891, dentre outras deliberações, negou provimento à irresignação do Ministério Público com atuação perante à 1ª Vara do Júri da Capital e deu parcial provimento à inconformidade de Ricardo José Neis.

Com isso, foi afastada a qualificadora da utilização de recurso que dificultou a defesa do ofendido, e determinado, ainda, a despronúncia do réu quanto a um dos fatos e a desclassificação de cinco tentativas de homicídio para delitos de lesão corporal.

No recurso especial, foi sustentado, em síntese, o descabimento da decisão desclassificatória e de despronúncia, bem assim da retirada de uma das qualificadoras e o não reconhecimento de outras duas adjetivadoras constantes da denúncia (motivo fútil e perigo comum). 

No entendimento da Procuradoria de Recursos, isso somente poderia se dar se evidenciada a total ausência de indícios de autoria e prova da materialidade ou, no caso das qualificadoras, a sua manifesta improcedência – situações inocorrentes no caso.

Dessa forma, o Ministério Público postulou reforma da decisão, para que a causa seja integralmente apreciada pelo Tribunal do Júri da Comarca de Porto Alegre.


Ricardo José Neis é autor do atropelamento de ciclistas que participavam da manifestação do grupo Massa Crítica em fevereiro de 2011, no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre.

Abaixo a íntegra do Recurso Especial:



PROCESSO N.º:       70053872891

RECORRENTE:        MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

CNPJ:                          93802833001/57

RECORRIDO:           Ricardo José Neis

OBJETO:                    RECURSO ESPECIAL, com fundamento no artigo 105, inciso III, alínea “a”, da Constituição Federal


O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, por seus Procuradores de Justiça signatários, nos autos do Recurso em Sentido Estrito em epígrafe, irresignado com a respeitável decisão proferida pela Terceira CÂMARA CRIMINAL do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul que rejeitou as preliminares (unânime), deu parcial provimento ao recurso em sentido estrito defensivo e negou provimento à insurgência Ministerial (por maioria), vem, perante Vossa Excelência, interpor o presente RECURSO ESPECIAL, com fundamento no artigo 105, inciso III, alínea “a”, da Constituição Federal.

Requer, ainda, uma vez devidamente processado o presente recurso, seja deferido o seu seguimento pelas razões anexas, determinando-se a remessa dos autos ao SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.


Por fim, solicita-se que a intimação pessoal aos signatários, no presente feito, se faça na PROCURADORIA de Recursos do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, na Avenida Aureliano de Figueiredo Pinto, 80, Torre Norte, 12º andar, Bairro Praia de Belas, Porto Alegre – RS, 90050-190, Telefone: (51) 3295-2137 (artigo 41, inciso IV, da Lei n.º 8.625, de 12 de fevereiro de 1993 – Lei Orgânica Nacional do Ministério Público).

Porto Alegre, 23 de maio de 2013.




Mário Cavalheiro Lisboa,

Procurador de Justiça.





IVORY COELHO NETO,
Subprocurador-Geral de Justiça para Assuntos Jurídicos.[1]
GR/TD



EGRÉGIO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
COLENDA TURMA JULGADORA
EMINENTE RELATOR

RAZÕES DE RECURSO ESPECIAL

1.                                  DO RELATÓRIO:

Ricardo José Neis foi denunciado pela prática de dezessete tentativas de homicídio qualificadas pelo motivo fútil, perigo comum e recurso que dificultou a defesa dos ofendidos, por fatos ocorridos no dia 25 de fevereiro de 2011, por volta das 19h15min, na Rua José do Patrocínio nº 648, em Porto Alegre/RS, quando fez uso do Golf 1.6, preto, de placas IVU-1110 para, ao acelerá-lo e arremessá-lo contra as vítimas, dar início ao ato de matá-las, não consumando seu intento por circunstâncias alheias a sua vontade.

Devidamente instruído o feito, sobreveio decisão que julgou parcialmente procedente a acusação, pronunciando o imputado como incurso nas sanções do artigo 121, §2º, IV, c/c o art. 14, II, (dezessete vezes) (fls. 1788/1801).

Inconformadas, acusação e defesa interpuseram recurso em sentido estrito. A Terceira Câmara Criminal, ao julgá-lo, rejeitou as preliminares, negou provimento à inconformidade ministerial e deu parcial provimento à defensiva, para a) afastar a qualificadora reconhecida na pronúncia; b) despronunciar o réu quanto ao 16º fato (vítima Jéssica); c) desclassificar a imputação para lesão corporal no que tange aos fatos 2, 5, 6, 7 e 15 (fls. 1951):

O Parquet opôs embargos de declaração, os quais foram rejeitados (fl. 1981/1984v.):

Em face dessa decisão, o Ministério Público interpõe recurso especial, com base no artigo 105, III, alínea “a”, da Constituição Federal.

2.                                                    do prequestionamento

Não se tenha dúvida do prequestionamento da matéria. Veja-se o voto proferido pelo Desembargador-Relator, no julgamento do recurso em sentido estrito (fls. 1941/1947v.):
“V. Desclassificação
Cabe operar à desclassificação do fato denunciado para lesões corporais em relação às vítimas Tiago, Moisés, Valesca, Sidinei e Maria Nelciria.
Quanto a Tiago, conforme a sua própria narrativa, foi atingido por uma bicicleta e não pelo automóvel do acusado (fl. 1101). Especificou que “o meu amigo que estava do lado bateu voou e alguém bateu em mim assim, no guidão da bicicleta” (fl. 1110). Ora, não há elementos mínimos nos autos que permitam concluir que o acusado visava à morte dessa vítima, que, inclusive, teve lesão mínima, como descrito no auto de exame de corpo de delito.  Aliás, cabe ressaltar que este ofendido não prestou declarações na fase policial e nada constou a seu respeito no relatório da autoridade policial, não tendo o acusado sido indiciado pela suposta tentativa de homicídio desta vítima (fl. 599).
A vítima Valesca, em juízo, foi específica ao afirmar que: “eu não fui atropelada diretamente pelo carro quando o carro passou. Quando as bicicletas começaram a cair para os lados nesse momento sim eu me machuquei” (fl. 115). Na fase policial, de igual forma, disse que bicicletas caíram por cima dela, o que ocasionou o corte em seu pé (fl. 494).
Sidinei afirmou que uma pessoa foi arremessada contra ele, não tendo sido atingido diretamente pelo réu (fl. 1175). Quando questionado especificamente, confirmou que o carro não o atingiu (fl. 1182). Na fase policial, não esclareceu as circunstâncias de como restou lesionado, mas também não referiu ter sido atingido pelo acusado (fl. 477).
Quanto à vítima Maria Nelciria, na fase policial narrou que foi atropelada e que, com o impacto, projetada para o alto (fl. 475). Em juízo, contudo, esclareceu que foi atingida pelas bicicletas que o réu abalroou (fl. 1073).
Com efeito, embora se possa considerar que o fato imputado ao réu teria causado o tumulto que deu causa às lesões das vítimas, não há demonstração de que o réu tinha o objetivo de matá-las, ou assumiu esse risco. Não se pode generalizar a ação do réu a ponto de considerar que em qualquer dano ou lesão colateral havia intenção de causar a morte. Aliás, o Ministério Público, sustentando essa tese, deve trazer indícios suficientes. Assim, analisando-se as lesões sofridas, bem como as circunstâncias em que a ação ocorreu quanto a estas vítimas, não há elementos que permitam o pronunciamento do acusado por tentativa de homicídio.
No que se refere a Moisés há nos autos as declarações policiais (fl.305), bem com o seu depoimento em juízo (fls. 1060-1073), mas não há entre eles total convergência e o órgão acusador não se preocupou em esclarecer as circunstâncias do fato e comprovar que esta vítima era um suposto alvo da tentativa de homicídio denunciada. Na fase policial, o ofendido teria narrado que viu diversas bicicletas sendo abalroadas e que foi atropelado, sendo arrastado por alguns metros devido ao grande fluxo de bicicletas no local (fl. 305). Em juízo, a exposição acerca do evento é mínima. Asseverou que “vi que tinham pessoas voando na frente do veículo, eu tentei sair, mas como tinha bastante pessoas dos lado, eu não consegui e fui atingido por trás” (fl. 1060). Após essa breve narrativa, já no final do depoimento, ao declinar os ferimentos que teve, afirmou “fiquei com um corte dentro da perna e nas costas marcas de pneus de bicicleta que me acertaram primeiro a bicicleta, depois o veículo”.
Nestes termos, não se sabe em que posição a vítima estaria na pista e se o veículo vinha em sua direção ou em direção a outras vítimas e, em razão do fluxo intenso, acabou sendo atingida por outra bicicleta, que o projetou em direção ao carro. Além disso, não há elementos para conclusão sobre a parte do veículo que o atingiu. Quanto à explanação feita na fase policial sobre ter sido arrastado, não há maiores especificações.
Com efeito, pode ser que o réu não visasse diretamente a essa vítima e o Ministério Público tenha considerado que agiu com dolo eventual, assumindo o risco de matá-la. Aliás, não há menção de situação de dolo eventual na denúncia.
Desta forma, em relação a essas vítimas mencionadas, cabe a desclassificação do fato para lesões corporais, nos termos do art. 418 do Código de Processo Penal. Cabe ressaltar que há na denúncia a descrição de lesões corporais, o que permite a realização da chamada “emendatio libelli”.
Desta forma, desclassifico os fatos 2º, 5º, 6º, 7º e 15º para os lindes do art. 129 do Código Penal, devendo ser submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri, pois se trata de delito coexo.
VI. Despronunciamento
Quanto à vítima Jéssica (16º fato) cumpre operar o despronunciamento do acusado.
Ocorre que essa vítima não foi ouvida em nenhum momento nos autos, a fim de que pudesse confirmar a causa das lesões corporais evidenciadas no exame de corpo de delito (fl. 777). Constata-se que não prestou declarações na fase policial, não tendo havido o indiciamento do réu por este fato (fl. 599). Surpreende também não ter sido ouvida em juízo. Essa vítima não foi localizada, conforme mandado de fl. 1532, e houve desistência por parte do Ministério Público (fls. 1595-1596). Desta forma, não há a versão da ofendida a fim de que se pudesse confirmar, por exemplo, se foi atingida diretamente pelo veículo do acusado.
Deve haver indícios suficientes da autoria para que haja o pronunciamento, na previsão do art. 414 do Código de Processo Penal. No caso, a ausência da sua versão acerca dos fatos não permite considerar que há indícios suficientes da autoria, embora haja prova da materialidade.
Nestes termos, impositivo o despronunciamento do acusado em relação a este fato.
VII. Qualificadoras
O Ministério Público pretende a incidência das qualificadoras do motivo fútil e perigo comum, afastadas na sentença; enquanto a defesa pretende o afastamento da qualificadora do meio que dificultou a defesa da vítima.
a) Motivo fútil
Não assiste razão ao Ministério Público, pois não ficou minimamente demonstrada a circunstância qualificadora. A denúncia descreve que o réu queria imprimir velocidade em seu veículo, encontrando as vítimas pelo caminho, demonstrando extremo egoísmo e individualismo.
Ora, a prova produzida não corrobora a tese. Conforme se verificou dos depoimentos das vítimas e outras testemunhas teria havido uma discussão entre réu e vítimas, porquanto estas estavam impedindo a passagem do seu automóvel na pista de rolamento. Logo, não se constata a intenção de apenas “imprimir velocidade em seu veículo”.
Correto, pois, o afastamento da qualificadora.
b) Perigo comum
Essa circunstâncias qualificadora, de igual forma, não merece persistir. O art. 121, § 2º, III, do Código Penal traz as hipóteses de o crime ser cometido com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum. Com efeito, a parte final do dispositivo (perigo comum) deve ser interpretada em consonância com o que lhe antecede. Neste sentido, Luiz Regis Prado especifica que “o perigo comum é aquele capaz de afetar número indeterminado de pessoas (v.g. fogo, explosivo, inundação, desabamento)”[2].
No ponto, pertinente colacionar os fundamentos expostos na sentença:
De outra banda, na espécie, não há se concluir que da ação resultara perigo comum, uma vez que a circunstância qualificadora em comento deve guardar simetria com as expressões legais que a antecedem, contidas no inciso III do parágrafo segundo do art. 121 do Código Penal. Na espécie, a utilização de veículo automotor, ao objetivo de atropelar indivíduos, não possui natureza similar ao emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia e tortura. Nesse sentido, vale frisar que “O art. 121, § 2º, inciso III do Código Penal prevê qualificadora consubstanciada nos meios de execução do delito, referindo inicialmente os meios específicos (veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura) e, a seguir, usando uma expressão genérica (ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum). Trata a parte final do dispositivo de hipótese de "interpretação analógica", na qual o significado que se busca é extraído do próprio dispositivo legal, levando-se em conta exclusivamente as expressões genéricas e abertas utilizadas pelo legislador, isto é, o meio a que a lei se refere de forma genérica, qual seja, o outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum, deve guardar relação com os meios enunciados especificamente na primeira parte do dispositivo. Para a configuração da qualificadora do perigo comum, portanto, exige-se que o meio de execução do delito seja potencialmente apto a gerar uma catástrofe. A direção perigosa, no entanto, por mais ostensiva e arriscada que seja, e ainda que possa causar danos a outras pessoas, além da efetivamente atingida, obviamente não tem o mesmo caráter de força propulsora de perigo comum que possuem, por exemplo, um incêndio, uma explosão ou uma inundação” (Recurso em Sentido Estrito de nº 70043527118, da Primeira Câmara Criminal, do Egrégio Tribunal de Justiça, Relator: Manuel José Martinez Lucas, julgado em 19/10/2011). Nessa senda, vai rechaçada a circunstância qualificadora.
Na verdade, uma interpretação mais simples e fácil, é apresentada por Guilherme de Souza Nucci:
Temos, então, três famílias: o meio insidioso (pérfido, enganoso, que constitui uma cilada para a vítima), o meio cruel (que exagera, propositadamente, o sofrimento da vítima) e o meio que traz perigo comum (aquele que provoca dano à vítima, mas também faz outras pessoas correrem risco)[3].
Com efeito, no caso dos autos todas as vítimas foram arroladas na denúncia, tendo havido pronúncia em relação a todas elas. Na presente decisão haverá a desclassificação de alguns dos fatos da acusação para lesões corporais leves, conexos. E, o recorrente não visou atingir a apenas uma ou duas das vítimas, mas visou a atingir a todas que estivessem no seu fluxo de trânsito. Assim, não pode ser acolhida essa qualificadora, porquanto a qualificadora somente caberia se houvesse a possibilidade de atingir outras pessoas diversas das diretamente visadas. Considerando que todas as atingidas e que estavam no movimento de protesto foram arroladas como vítimas, não há margem para acolher essa qualificadora. Com relação as demais pessoas que estavam no movimento de protesto, que também eram ciclistas, que não foram atingidas, na prevalece a qualificadora, uma vez que estavam presentes.
Em suma, a qualificadora do “perigo comum” somente persiste se “outras pessoas” além do alvo, ou dos alvos, podem ser atingidas. Esse não foi o caso. Aliás, tivesse o recorrente atingido outras vítimas, em relação a estas também teria sido denunciado.
Desta forma, é mantido o afastamento desta qualificadora.
c) Recurso que dificultou a defesa da vítima
Assiste razão à defesa no afastamento desta qualificadora.
O Ministério Público, na denúncia, descreveu que o réu dificultou a defesa das vítimas, pois estas trafegavam de forma distraída, sendo atingidas de inopino. Ora, as vítimas trafegavam em via pública, utilizando a grande parte ou até mesmo a totalidade desta, conforme a prova testemunhal, e faziam parte de um grupo denominado “massa crítica”. As próprias vítimas relataram que, por vezes, os automóveis tentam trafegar por entre as bicicletas, o que é impedido por estas. Há, ainda, aqueles indivíduos que se posicionam a fim de acalmar o ânimo dos motoristas que se exaltam com o movimento, chamados nos autos como “rolhas” (fl. 1019).
Desta forma, estas pessoas que circulam de bicicleta na via de rolamento sabem que, eventualmente, podem sofrer algum tipo de acidente, que correm esse risco. No caso dos autos, já sabendo da animosidade de alguns motoristas, ficam ainda mais atentas. Logo, considerando essas circunstâncias e a prévia discussão entre o réu e alguns ciclistas na ocasião, não há como persistir esta circunstância qualificadora.
No caso, pertinente o comentário que Guilherme de Souza Nucci: 
Outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa da vítima: ao generalizar, fornecendo de antemão os exemplos, deixa a lei penal bem claro que o objetivo desta qualificadora é punir mais severamente o agente que, covardemente, mata o ofendido. Traindo-o, emboscando-o ou ocultando suas verdadeiras intenções, está prejudicando ou impedindo qualquer reação de sua parte, que se torna presa fácil.
(...)
Entretanto, é preciso agir com cautela para não generalizar, na prática, uma qualificadora que torna a pena do homicídio muito mais grave. Note-se que todo ataque tem uma dose natural de surpresa, pois, do contrário, seria um autêntico duelo. Não se costuma cientificar a vítima de que ela será agredida, de forma que não é o simples fato de iniciar um ataque súbito que faz nascer a qualificadora. É indispensável a prova de que o agente teve por propósito efetivamente surpreender a pessoa visada, enganando-a, impedindo-a de se defender ou, a menos, dificultando-lhe a reação. (grifei)
Logo, resta afastada também esta qualificadora.
VIII. Concurso de crimes
Quanto ao concurso de crimes a denúncia diz incidir o art. 69 do Código Penal. Entretanto, evidente que o fato foi praticado mediante apenas uma só ação (o que é, inclusive, verificado pela cópia da mesma descrição em todos os fatos da denúncia). O réu teria causado as lesões corporais nas vítimas arremessando o veículo contra elas. Logo, não há falar em mais de uma ação ou omissão. É incidente na espécie, logo, o art. 70 do Código Penal.
Quanto ao tipo de concurso formal incidente (perfeito ou imperfeito) depende da análise do dolo do agente e das circunstâncias do fato, além de dever preponderar outra análise, que é feita na sequência.
Em primeiro lugar cumpre dizer que o recorrente não teve desígnios autônomos, pois teve o desígnio de afastar-se do local, acelerando o veículo e arremetendo-o contra quem estivesse à sua frente – os ciclistas que participavam do movimento. Teve, então, um desígnio apenas. Portanto, trata-se de concurso formal perfeito, em que se deve aplicar a pena mais elevada ou se iguais a mais grave, acrescida de um sexto à metade.
[...]
E isso justo porque, reitero e repito, não tendo havido consequências graves às vítimas, por mais que o fato, ou fatos, da acusação, possam ser considerados, no seu nível de compreensão abstrata, verdadeiramente grave, não houve efetivo risco de morte às vítimas. Certamente, então, a pena que eventualmente será imposta,  no caso de condenação pelo Conselho de Sentença, atenderá o princípio da proporcionalidade.
IX. Dispositivo
Diante do exposto, rejeitadas as preliminares, dou parcial provimento ao recurso defensivo e (a) mantenho o pronunciamento do réu em relação aos 1º, 3º, 4º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 14º e 17º fatos nas sanções do art. 121, caput, combinado com o art. 14, II, na forma do art. 70 (concurso formal perfeito), todos do Código Penal, pois afastada a qualificadora do meio que dificultou a defesa da vítima e reconhecido o concurso formal perfeito; (b) desclassifico os 2º, 5º, 6º, 7º e 15º fatos para o delito do art. 129, na forma do art. 70, ambos do Código Penal; (c) despronuncio o réu em relação ao 16º fato denunciado, com fulcro no art. 414 do Código de Processo Penal e (d) nego provimento ao recurso do Ministério Público.”

Ressalta-se que, embora alguns dos artigos violados não tenham sido expressamente referidos, restaram prequestionados, pois o deslinde da questão passou, necessariamente, pela análise dos respectivos conteúdos. Inexistem, portanto, óbices ao seguimento da inconformidade.


3.                                                    DAS RAZÕES DO PEDIDO DE REFORMA:



3.a.                               da negativa de vigência ao artigo 121, parágrafo 2º, incisos II, III e IV, do Código Penal e 413 do Código Penal:

A Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça, ao operar a desclassificação quanto aos fatos nº 2, 5, 6, 7 e 15 e ao despronunciar o imputado quanto ao fato 16, contrariou os artigos 414 e 418 do Código de Processo Penal; e, ao manter o afastamento das qualificadoras do motivo fútil e do perigo comum e ao expungir aquela que fora reconhecida na pronúncia, relativa ao recurso que dificultou a defesa dos ofendidos, negou vigência ao artigo 121, parágrafo 2º, incisos II, III e IV, do Código Penal. Disso resulta, ainda, negativa de vigência ao artigo 413, caput e §1º, do Código de Processo Penal.

- da desclassificação (contrariedade ao artigo 418 do CPP):

Ao analisar a imputação vinculada às vítimas Tiago (2), Moisés (5), Valesca (6), Sidinei (7) e Maria Nelciria (15), a Corte Local, por maioria, entendeu que o fato de o acusado não as haver atingido diretamente, mas apenas como ação reflexa de sua conduta, descaracterizaria o crime de homicídio doloso, na forma tentada, pois lhe faltaria o elemento subjetivo do tipo.

Não se sustentam tais ponderações, porquanto a fundamentação do próprio acórdão recorrido contempla expressa afirmação da configuração do dolo de matar em relação a todas as pessoas que participavam da manifestação e que estivessem à sua frente, sequer limitando-o àquelas que restaram lesionadas do evento. Confira-se:

“Com efeito, no caso dos autos todas as vítimas foram arroladas na denúncia, tendo havido pronúncia em relação a todas elas. Na presente decisão haverá a desclassificação de alguns dos fatos da acusação para lesões corporais leves, conexos. E, o recorrente não visou atingir a apenas uma ou duas das vítimas, mas visou a atingir a todas que estivessem no seu fluxo de trânsito. Assim, não pode ser acolhida essa qualificadora, porquanto a qualificadora somente caberia se houvesse a possibilidade de atingir outras pessoas diversas das diretamente visadas. Considerando que todas as atingidas e que estavam no movimento de protesto foram arroladas como vítimas, não há margem para acolher essa qualificadora. Com relação as demais pessoas que estavam no movimento de protesto, que também eram ciclistas, que não foram atingidas, na prevalece a qualificadora, uma vez que estavam presentes.
Em suma, a qualificadora do “perigo comum” somente persiste se “outras pessoas” além do alvo, ou dos alvos, podem ser atingidas. Esse não foi o caso. Aliás, tivesse o recorrente atingido outras vítimas, em relação a estas também teria sido denunciado. [...]”


Com efeito, a presença do animus necandi, na esteira da máxima de que “Uma causa evidente já traz em si o julgamento[4]”, deflui da simples constatação visual das imagens captadas por ocasião dos fatos (vide CD anexado aos autos na fl. 1744), exaustivamente divulgadas pela mídia e na internet:


Nítido, portanto, que o imputado, em atitude de indiferença com o resultado de seu agir, acelerou seu veículo em direção a inúmeras pessoas que transitavam à sua frente, inclusive crianças, assumindo o risco de matá-las, seja em razão de atingi-las diretamente com o automóvel, quer pelas consequências secundárias de tal conduta – possibilidade, por exemplo, de que as vítimas batessem com a cabeça no chão ao serem derrubadas de suas bicicletas; de que fossem arremessadas contra outros veículos ou objetos fixos (postes, árvores); de que se chocassem, violentamente, umas contra as outras, etc.

Atente-se, de outro giro, à impossibilidade de compartimentar a ação do réu. Se todas as vítimas foram atingidas no mesmo contexto e a Corte local reconheceu a presença do dolo de matar com relação a algumas delas, é logicamente incompatível pretender-se excluir o elemento subjetivo quanto a outras, com base no singelo argumento de que as lesões sofridas por estas últimas não decorreram diretamente de contato com o veículo, ainda mais quando admitido que o denunciado Ricardo José Neis visava a atingir, indistintamente, todos aqueles que estivessem no seu fluxo de trânsito.

Sucede, nos termos do artigo 13, caput, do Código Penal, que o resultado é imputável a quem lhe deu causa, considerando-se “causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”. Por conseguinte, plenamente demonstrada o nexo de causalidade entre conduta do acusado e as lesões sofridas pelos ofendidos Tiago, Moisés, Valesca, Sidinei e Maria Nelciria.

Como sabido, o crime é analiticamente conceituado como o fato típico, ilícito e culpável. Nos crimes materiais, o fato típico é formado pela conduta (1), resultado naturalístico (2), nexo de causalidade (3) e tipicidade normativa (4). Como conduta, entende-se a ação ou omissão humana, voluntária e consciente, que, orientada pela teoria finalista da ação, pressupõe que todo comportamento humano está direcionado a alcançar um determinado objetivo, daí exsurgindo a necessidade de análise do elemento subjetivo do tipo (1). Evidenciada uma conduta humana e constatado o dolo, passa-se à verificação do resultado, compreendido como a modificação do mundo exterior (2). Somente então, o intérprete da norma ingressará na avaliação da relação de causa e efeito entre a conduta do agente e o resultado, a partir da teoria dos equivalentes causais (conditio sine qua non), segundo a qual, somente a ausência de dolo ou culpa é capaz de afastá-lo (3). E, por derradeiro, avança-se à análise da tipicidade material (4).

Assim, na hipótese dos autos, afirmado o animus necandi quanto a todos as pessoas que estivessem no fluxo de trânsito do réu, a teoria da equivalência das condições faz com que reste configurada a tipicidade também com relação às vítimas sobre as quais operou-se a desclassificação.

Ora, conduta houve - ação do acusado, voluntária e consciente, consistente em acelerar seu automóvel em direção a todos que estivessem à sua frente; resultado também - vez que comprovadas as lesões sofridas pelos ofendidos; de igual modo, evidenciado o nexo de causalidade - pois a conduta do réu foi a causa sem a qual o resultado não teria ocorrido; e, por fim, a tipicidade normativa restou preenchida, já que tais atos são capazes de configurar o tipo penal inscrito no artigo 121, na forma do artigo 14, inciso II, ambos do Código Penal.

Ou seja, afirmado o elemento subjetivo na primeira etapa de verificação do fato típico quanto a todos que se antepusessem no fluxo de trânsito do imputado, inviável afastar a relação de causalidade (terceira etapa), a pretexto de que algumas das vítimas não foram diretamente atingidas pelo automotor, vez que o abalroamento foi “a ação sem a qual o resultado não teria ocorrido”.

Dessa maneira, equivocada a aplicação do artigo 418 do Código de Processo Penal, pois não havia qualquer definição jurídica diversa daquela formulada na denúncia a ser dada aos fatos, do que sobressai a contrariedade ao conteúdo normativo desse dispositivo legal e a necessidade de restabelecimento da pronúncia - com a inclusão de todas as qualificadoras articuladas na exordial, consoante argumentação que será desenvolvida em tópico próprio.

- da despronúncia (contrariedade ao artigo 414 do CPP):

Quanto ao 16º fato, a decisão majoritária do Colegiado estadual foi pela despronúncia, sob o argumento de que a vítima não foi ouvida, a fim de que pudesse confirmar a causa das lesões sofridas.

Na linha das considerações antes alinhavadas, sendo prescindível que os ofendidos tenham sido atingidos diretamente pelo automóvel conduzido pelo recorrido, também quanto a este fato se impõe o restabelecimento da pronúncia, visto que a prova expressamente admitida no aresto é suficiente para atestar a autoria e a materialidade, independentemente da oitiva da vítima JÉSSICA.

Nesse contexto, é que resulta caracterizada a contrariedade ao artigo 414 do Código de Processo Penal, pois a impronúncia (no caso a despronúncia) somente tem lugar quando os elementos anteriormente mencionados não se fizerem presentes.

Ademais, importante considerar que, tratando-se de feito submetido ao procedimento bifásico de julgamento pelo Tribunal Popular, a oitiva da ofendida em questão poderá ocorrer em plenário, nos termos do que dispõe o artigo 473 do Código de Processo Penal: “Art. 473. Prestado o compromisso pelos jurados, será iniciada a instrução plenária quando o juiz presidente, o Ministério Público, o assistente, o querelante e o defensor do acusado tomarão, sucessiva e diretamente, as declarações do ofendido, se possível, e inquirirão as testemunhas arroladas pela acusação”.

- do motivo fútil (negativa de vigência ao art. 121, §2º, II, CP):

O aresto fustigado, quanto ao ponto, manteve a exclusão do motivo fútil, por considerar que a descrição da peça inaugural não retrataria o que de fato ocorreu[5].

No entanto, a prova coligida indica a existência de substrato hábil a ensejar solução diversa da encontrada. Há elementos a revelar que a ação criminosa estava diretamente ligada ao fato de que, em atitude de “extremo egoísmo e individualismo”, o imputado acelerou seu automóvel, colhendo todos que estivessem no seu caminho, porque desejava trafegar em velocidade maior do que a das bicicletas dos manifestantes. Eventual discussão entre o réu e os ciclistas prendeu-se a essa circunstância e, portanto, não foi a causa, senão mero pretexto para a atitude despropositada que o motorista do veículo tomou em relação aos integrantes do grupo.

Importante reprisar, no ponto, o depoimento do lesado Helton Sheer de Moraes, o qual, na etapa judicial, disse que “estava havendo alguma discussão e eu diria que o veículo vinha tentando forçar uma passagem, impondo a sua passagem sobre esses ciclistas que estavam imediatamente ao redor do carro, que um dos ciclistas posicionou a sua bicicleta à frente do carro, na linha do carro, na trajetória do carro fazendo sinal para que ele parasse, para que ele não avançasse alo veículo (...) o carro forçou mais a passagem, chegando a empurrar a bicicleta, não foi um atropelamento, foi empurrar, ele veio arrastou as rodas da bicicleta de lado no chão, uma das rodas. Então eu olhei e ‘Nossa, já chegou nesse nível a coisa’” (decisão de pronúncia – fl. 1798).

Desse modo, a futilidade do motivo está relacionada à desproporcionalidade da conduta do recorrido em face da simples oposição dos ciclistas à passagem do carro do réu – à velocidade em que desejava ele transitar -  no local da manifestação, sendo,  por conseguinte, irrelevante ter, ou não, ocorrido discussão momentos antes da ação criminosa, na medida em que esta, induvidosamente, caracteriza mera desculpa para desafogo do ímpeto egoísta do acusado.

No particular, relevante a lição de GUILHERME DE SOUZA NUCCI, Fútil: é o motivo flagrantemente desproporcional ao resultado produzido, que merece ser verificado sempre no caso concreto. Mata-se futilmente quando a razão pela qual o agente elimina outro ser humano é insignificante, sem qualquer respaldo social ou moral, veementemente condenável.[6]. Dessa sorte, como assinalado em hipótese assemelhada, o motivo é considerado fútil quando é absolutamente desproporcional ao fato cometido por representar, mais que uma causa determinante do resultado, um mero pretexto, uma ocasião para o agente desafogar o seu impulso criminoso[7].

Note-se, por oportuno, que a referência feita na decisão pronúncia, no sentido de que o real motivo do delito foi o “desgosto do réu em ver obstruída uma via pública” (fl. 1800) é circunstância diretamente atrelada à sua pretensão de poder trafegar em velocidade superior àquela que a manifestação lhe estava a possibilitar, de sorte que não se revela manifestamente improcedente a qualificadora, porquanto absolutamente desproporcional a ação.

- do perigo comum (negativa de vigência ao art. 121, §2º, III, CP):

Relativamente a este aspecto, a Corte Estadual, igualmente, manteve a exclusão da qualificadora, ao entender, por maioria, que a parte final do dispositivo em comento deve ser interpretada em consonância com a que lhe antecede, de forma que somente ação semelhante ao emprego de “veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura, ou outro meio cruel, ou de que possa resultar perigo comum” é capaz de caracterizá-la.

No particular, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou pela possibilidade de manutenção da qualificadora em apreço em hipóteses não assemelhadas àquelas expressamente mencionadas na parte inaugural do inc. III do §2º do artigo 121 do Código Penal, reconhecendo a possibilidade de sua aplicação, até mesmo quando a imputação for a título de dolo eventual. Veja-se:

“PROCESSUAL PENAL. SENTENÇA DE PRONÚNCIA. ART. 408 DO CPP. CRIME DE HOMICÍDIO DA COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI POPULAR. DOLO EVENTUAL. ART. 18, I DO CPB. EXCLUSÃO DA QUALIFICADORA DE PERIGO COMUM (ART. 121, § 2o., III DO CPB) PELO JUIZ PRONUNCIANTE.  IMPOSSIBILIDADE, SALVO SE MANIFESTA OU INDISCUTÍVEL A SUA INADMISSIBILIDADE. LIÇÕES DA DOUTRINA JURÍDICA E DA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS DO PAÍS.
1.   Não se permite ao Juiz, na sentença de pronúncia (art. 408 do CPP), excluir qualificadora de crime doloso contra a vida (dolo eventual), constante da Denúncia, eis que tal iniciativa reduz a amplitude do juízo cognitivo do Tribunal do Júri Popular, albergado na Constituição Federal; tal exclusão somente se admite quando a qualificadora for de manifesta e indiscutível impropriedade ou descabimento. Lições da doutrina jurídica e da Jurisprudência dos Tribunais do País.
2.   Caracteriza-se o dolo do agente, na sua modalidade eventual, quando este pratica ato do qual pode evidentemente resultar o efeito lesivo (neste caso, morte), ainda que não estivesse nos seus desígnios produzir aquele resultado, mas tendo assumindo claramente, com a realização da conduta, o risco de provocá-lo (art. 18, I do CPB).
3.   O agente de homicídio com dolo eventual produz, inequivocamente, perigo comum (art. 121, § 2o., III do CPB), quando,   imprimindo velocidade excessiva a veículo automotor (165 km/h), trafega em via pública urbana movimentada (Ponte JK) e provoca desastre que ocasiona a morte do condutor de automóvel que se deslocava em velocidade normal, à sua frente, abalroando-o pela sua parte traseira.
4.   Recurso do Ministério Público a que se dá provimento.”
(REsp 912.060/DF, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, Rel. p/ Acórdão Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 14/11/2007, DJe 10/03/2008, grifos apostos)

Ademais, impossível concordar com a orientação esposada  no acórdão do órgão fracionário do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que consignou a manutenção do afastamento do perigo comum, porque “o recorrente não visou atingir a apenas uma ou duas das vítimas, mas visou a atingir a todas que estivessem no seu fluxo de trânsito. Assim, não pode ser acolhida essa qualificadora, porquanto a qualificadora somente caberia se houvesse a possibilidade de atingir outras pessoas diversas das diretamente visadas” (fl. 1944v.).

Assim como sucede em face da adjetivadora do motivo fútil, há elementos suficientes nos autos à configuração do perigo comum, tanto que a existência de dúvida acerca de sua ocorrência levou o Revisor, Desembargador Jayme Weingartner Neto, a proferir voto divergente, nos seguintes termos:
“O segundo ponto de divergência diz com o afastamento da qualificadora prevista no inciso III, do § 2º, do artigo 121 do CP. Vislumbro que há provas nos autos que apontam que a conduta do réu possa ter causado perigo comum.
Como mencionado pelo emérito Relator, o dispositivo em tela refere inicialmente meios específicos (veneno, fogo, explosivo, asfixia e tortura), exemplificando o que seriam as expressões genéricas meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum. Evidentemente seria impossível ao legislador prever todos os meios insidiosos, cruéis ou que possam resultar perigo comum, deixando certo espaço para a discricionariedade do intérprete legal subsumir o fato à norma.
Se a intenção fosse restringir a aplicabilidade da qualificadora apenas ao fogo e ao explosivo, não seria necessário inserir no dispositivo a locução ou outro meio de que possa resultar perigo comum.
E é na doutrina que busco maiores e melhores elementos para esclarecer o que é um meio que possa causar perigo comum e, a partir daí, analisar se a conduta perpetrada pelo réu amolda-se à espécie. Segundo o que majoritariamente se encontra na doutrina, o meio que possa resultar perigo comum é aquele que pode atingir um número indefinido e indeterminado de pessoas, embora não se exija que todas estas seja de fato atingidas[8]. É meio cuja utilização pode expor a perigo número elevado de pessoas, indicado pelas características do objeto utilizado no crime, bem como pelas peculiaridades da situação fática. Distingue-se, por outro lado, dos crimes de perigo comum, pois no homicídio qualificado o agente não busca colocar em risco a incolumidade pública, mas sim ceifar a vida de determinada(s) pessoa(s) e, ao fazê-lo, expõe a risco diversas outras pessoas[9].
Balizado o conceito, percebe-se que a conduta do réu, além de - em tese - ter atingido o resultado pretendido, atentando contra as vítimas, estendeu o perigo a todos os demais ciclistas, devendo ser levado em consideração que há notícias de que seriam cerca de 100 (cem) ciclistas a trafegar na via pública e obstaculizar (ou atrasar) a passagem do réu.
Considerando a situação fática da pista bloqueada por diversos ciclistas e a ausência de controle fino pelo acusado do automóvel (hipoteticamente usado com arma, mas sem a acuidade inerente à mira de um revólver, por exemplo), tendo atingido, direta e indiretamente, dezesseis pessoas, resta clara a existência de indicativos de que expôs a perigo tantos outros ciclistas, além dos pedestres que estavam no local, inclusive pelos desdobramentos imprevisíveis decorrentes de tumultos multitudinários.
Deste modo, a direção perigosa e agressiva de veículo automotor, em via pública, é capaz de produzir perigo comum e qualificar o delito de homicídio. Neste sentido, colaciono ilustrativo julgado do STJ, em que reconhecida a qualificadora em desfavor de motorista que imprimiu velocidade excessiva na condução de automóvel:
PROCESSUAL PENAL. SENTENÇA DE PRONÚNCIA. ART. 408 DO CPP. CRIME DE HOMICÍDIO DA COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI POPULAR. DOLO EVENTUAL.
ART. 18, I DO CPB. EXCLUSÃO DA QUALIFICADORA DE PERIGO COMUM (ART.
121, § 2o., III DO CPB) PELO JUIZ PRONUNCIANTE.  IMPOSSIBILIDADE, SALVO SE MANIFESTA OU INDISCUTÍVEL A SUA INADMISSIBILIDADE. LIÇÕES DA DOUTRINA JURÍDICA E DA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS DO PAÍS.
1.   Não se permite ao Juiz, na sentença de pronúncia (art. 408 do CPP), excluir qualificadora de crime doloso contra a vida (dolo eventual), constante da Denúncia, eis que tal iniciativa reduz a amplitude do juízo cognitivo do Tribunal do Júri Popular, albergado na Constituição Federal; tal exclusão somente se admite quando a qualificadora for de manifesta e indiscutível impropriedade ou descabimento. Lições da doutrina jurídica e da Jurisprudência dos Tribunais do País.
2.   Caracteriza-se o dolo do agente, na sua modalidade eventual, quando este pratica ato do qual pode evidentemente resultar o efeito lesivo (neste caso, morte), ainda que não estivesse nos seus desígnios produzir aquele resultado, mas tendo assumindo claramente, com a realização da conduta, o risco de provocá-lo (art. 18, I do CPB).
3.   O agente de homicídio com dolo eventual produz, inequivocamente, perigo comum (art. 121, § 2o., III do CPB), quando,   imprimindo velocidade excessiva a veículo automotor (165 km/h), trafega em via pública urbana movimentada (Ponte JK) e provoca desastre que ocasiona a morte do condutor de automóvel que se deslocava em velocidade normal, à sua frente, abalroando-o pela sua parte traseira.
4.   Recurso do Ministério Público a que se dá provimento.
(REsp 912.060/DF, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, Rel. p/ Acórdão Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 14/11/2007, DJe 10/03/2008)”

Além disso, não se sustenta o decisum no ponto em que considera impossível a caracterização da qualificadora em comento pelo fato de todas as vítimas terem restado lesionadas. Ora, os ofendidos foram, efetivamente, atingidos pelo agir do imputado, mas o que caracteriza o perigo comum é a presença de inúmeras outras pessoas no local, potencialmente vítimas, mas que não foram abalroadas e com relação às quais não houve a narrativa de fatos na denúncia. De outro lado, a configuração do elemento subjetivo também com relação a estas somente reforça a tese de que sua ação resultou perigo comum, já que sabidamente há que se considerar o dolo também com relação às circunstâncias do crime.

Ou seja, o raciocínio adequado é justamente o inverso daquele desenvolvido pela Corte. O imputado possuía a intenção de atingir todos os ciclistas que obstruíam a sua passagem e, ao acelerar seu veículo e avançando em direção aos manifestantes, criou real possibilidade de atingir todos que participavam do ato, e não apenas aqueles que sofreram lesões e foram apontados como vítimas na peça inaugural.

- do recurso que dificultou a defesa do ofendido (negativa de vigência ao art. 121, §2º, IV, CP):

No que tange ao recurso que dificultou a defesa do ofendido, reconhecido na decisão de primeiro grau, o colegiado considerou que a existência de prévia discussão entre os ciclistas vítimas e o recorrido seria capaz de expungi-la.

O acervo probatório coligido não exclui a possibilidade da configuração da qualificadora em tela, devendo ser observado que o próprio acórdão atacado reconhece o fato de os ofendidos terem sido surpreendidos pela ação inesperada do réu, o que dificultou a tomada de atitude defensiva, com o escopo de evitar a colisão que culminou com a produção dos ferimentos descritos na peça vestibular.

Confira-se, então, excerto do voto condutor do decisum (fls. 1.940-1.941v):

“A vítima Eduardo narra que o réu bateu com o veículo na sua bicicleta o que fez com que fosse projetada para cima do capô do automóvel, vindo a desmaiar (fl. 1139). A lesão na região occipital estaria justificada por esta circunstância. Quando questionado pela defesa se foi abalroado pelo lado esquerdo ou direito, respondeu que ficou no centro (fl. 1153). Na fase policial, disse que, quando olhou para trás, viu o veículo do réu a cerca de 2 metros de distância, não tendo tempo de evitar a colisão. (fl. 395).
Marcos apresentou depoimento coerente em juízo (fls. 1081-1114) e perante a autoridade policial (fl. 440). O ofendido afirmou que, após verificar uma discussão entre o acusado e outros ciclistas, afastou-se e ouviu barulho de batidas, tendo olhado para trás e visto bicicletas serem arremessadas para cima. Afirmou que tentou escapar, mas foi atingido e ficou inconsciente (fls. 1082-1083).
Diego, em juízo, disse que ouviu um barulho e olhou para trás, percebendo as pessoas sendo jogadas para cima pelo carro. Afirmou que tentou desviar para a esquerda, mas não teve tempo, tendo sido atingida a roda traseira da bicicleta, quando foi arremessado ao chão. Ressalta-se ter a vítima afirmado que estava no meio da pista, tendo visto o carro se dirigir em sua direção (fls. 1015-1016).
Thomas, no seu depoimento judicial, afirmou que “foi só o tempo de eu ouvir um barulho alto de metal contorcido, olhar para trás e receber o golpe do veículo” (fl. 1127). Respondeu que foi atingido pelo automóvel, não por uma bicicleta (fl. 1131). Seu depoimento está em consonância com as declarações policiais (fl. 472).
Sheila afirmou que estava circulando no meio da via e que foi a terceira a ser atropelada, tendo sido projetada para o alto e em seguida caído ao solo (fls. 1162-1174). Na fase policial, afirmou que bateu as costas no capô do automóvel do acusado (fl. 427).
Dailor afirmou que não conseguiu desviar do automóvel e que foi atingido do lado esquerdo, o que é corroborado pelo seu exame de corpo de delito (fl. 811). Suas declarações policiais estão na fl. 301.
Quanto à vítima Adilson, embora não esclareça em seu depoimento como foi atingido, confirma o fato descrito na denúncia. Em juízo disse que “olhou para trás e a gurizada se jogando por cima, tentei me jogar em cima de outro carro me salvar”, mas foi atingido, segundo asseverou (fl. 1198). As declarações policiais desta vítima estão na fl. 300.
Ricardo disse que foi o primeiro a ser atingido e que ficou no chão (fl. 1192). Na fase policial, prestou declarações na fl. 302.
Maria Cristina, em juízo, disse que ouviu um barulho e, antes de avistar o réu, desmaiou com o impacto. Quando questionada, disse acreditar ter sido atingida pelo veículo, mas que não aparece nas imagens captadas da cena do evento delitivo (fls. 1204-1205). Na fase policial também asseverou que desmaiou e que só recobrou os sentidos após (fl. 458). Com efeito, a vítima identifica a sua bicicleta à fl. 510 e verifica-se claramente a roda traseira entortada, o que corrobora a versão de que tenha sido atingida pelo veículo.
Suryan confirmou, em juízo, que foi atingido pelo automóvel, não tendo sofrido lesões graves (fl. 1225). A vítima prestou declarações policiais à fl. 421.
Helton, por sua vez, disse que foi jogado para cima pelo veículo do acusado (fl. 1229). Na fase policial, expôs narrativa coerente, explicitando que foi atingido por trás (fl. 436).”

Efetivamente, tais circunstâncias são aptas à caracterização da qualificadora descrita no inc. IV do art. 121 do CP, a qual, conforme leciona Guilherme de Souza Nucci:ao generalizar, fornecendo, de antemão os exemplos, deixa a lei penal bem claro que o objetivo desta qualificadora é punir mais severamente o agente que, covardemente, mata o ofendido. Traindo-o, emboscando-o ou ocultando suas verdadeiras intenções, está prejudicando ou impedindo qualquer reação de sua parte, que se torna presa fácil[10].

De mais a mais, a existência de prévia discussão - nos termos expostos no tópico referente ao motivo fútil - entre os envolvidos não é capaz de elidir, por si só, a caracterização da adjetivadora em comento, sendo imprescindível a análise das circunstâncias do fato.

“PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. ART. 121, § 2º, INCISOS II E IV DO CP. EXCLUSÃO DE QUALIFICADORA. RECURSO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA. IMPROCEDÊNCIA MANIFESTA NÃO EVIDENCIADA.
I - Na linha da remansosa jurisprudência desta Corte as qualificadoras somente podem ser excluídas na fase do iudicium accusationis, se manifestamente improcedentes. (Precedentes).
II - Se a r. decisão de pronúncia demonstrou de forma expressa as razões pelas quais deveria ser o recorrido pronunciado em relação à qualificadora do art. 121, § 2º, IV, do Código Penal, não poderia o e. Tribunal a quo, excluí-la sem a devida fundamentação.
(Precedentes).
III - A circunstância indicativa de discussão anterior entre vítima e acusado não exclui, por si só, a qualificadora referente ao recurso que impossibilitou a defesa da vítima. O modo como se deu a execução do crime revela-se elemento indispensável na aferição da caracterização desta qualificadora. In casu, nessa linha, o fato de constar que a vítima foi atingida pelas costas impede, ao menos nesta fase, o afastamento da referida qualificadora.
Recurso especial provido.”
(REsp 973.603/MG, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 02/09/2008, DJe 10/11/2008, grifou-se)

E, na hipótese dos autos, as imagens do ocorrido  são, por si só,  ilustrativas  para demonstrar que as vítimas foram surpreendidas pelo agir do imputado, circunstância ainda mais evidenciada ao se assistir ao vídeo mencionado, a partir do qual é possível perceber que, além de haver crianças e animais na via, a reação dos presentes foi de absoluta surpresa com o ocorrido, sobremaneira ao se considerar que o réu vinha em baixa velocidade e, de inopino, passou a imprimir altíssima velocidade.

- da negativa de vigência ao artigo 413, caput e §1º, do CPP:

Diante de todos esses dados examinados, tem-se que o enfrentamento e a valoração da prova caberia ao Conselho de Sentença, não havendo lugar para asseverar-se, de forma dogmática e genérica, que “não há demonstração de que o réu tinha o objetivo de matá-las, ou assumiu esse risco”.

Ora, como sustentar, diante dos elementos probatórios anteriormente delineados e cotejados, a inexistência de indícios acerca do dolo de matar, direto ou eventual?

Não há falar-se em ausência ou insuficiência de provas senão após cumpridamente superada a etapa pertinente ao enfrentamento e cotejo dos elementos de convicção coligidos, já que, parafraseando Émile-Auguste Chartier[11], é possível provar-se (ou não) tudo o que se quer – a verdadeira dificuldade é a identificação da construção lógica através da qual se chegou à conclusão sobre o que se quis (ou não) provar. Em consequência, somente a cabal demonstração do caminho percorrido pelo magistrado, dos processos mentais pelos quais chegou a determinado raciocínio, refutando ou acolhendo esta ou aquela premissa, é que permite a verificação da correção e justiça de seu julgamento. Afora isso, tudo o mais é retórica, dogmatismo ou arbítrio.

Com efeito, está cabalmente demonstrado que Ricardo José Neis, na condução de seu veículo automotor, avançou contra uma multidão de ciclistas, sendo certo que todas as lesões causadas nas vítimas se deram em razão de sua despropositada conduta, motivo pelo qual não poderia o órgão julgador excluir o fato da apreciação dos jurados.

Segundo a moldura legal do artigo 413, caput, e seu §1º, do Código de Processo Penal, a decisão de pronúncia consubstancia mero juízo de admissibilidade da acusação, em que se exige apenas o convencimento da prova material da existência do crime e indícios suficientes de autoria, de modo que, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, “nessa fase, a questão se decide pro societate e não pro reo” (RSTJ 98/430). Assim, salvo em hipóteses excepcionais, ou seja, quando estreme de dúvida a inexistência do fato ou de que o imputado não seja seu autor, ao juiz não é lícito afastar a imputação, sob pena de usurpar competência constitucional do Tribunal do Júri (artigo 5º, inciso XXXVIII, da Constituição Federal).

O acórdão, após ampla e aprofundada análise da prova[12], decidiu que há indícios de autoria, porém, a pretexto da existência de dúvida acerca do dolo na conduta do réu, não seriam hábeis a sustentar a pronúncia. 

Todavia, tal entendimento apresenta dois flagrantes equívocos: a) a perquirição minudente da prova coligida é descabida em sede de juízo de admissibilidade da acusação; b) a conclusão do acórdão (“não há demonstração de que o réu tinha o objetivo de matá-las, ou assumiu esse risco.”) desborda da orientação pacífica dos tribunais.

Em relação ao primeiro equívoco, a jurisprudência é clara ao interpretar as normas dos artigos 413, caput e parágrafo 1º, e 414, caput, ambos do Código de Processo Penal, de forma a limitar o magistrado, na decisão da pronúncia, à verificação da existência de indícios de autoria e prova da materialidade, e vedar-lhe a ampla incursão nas provas produzidas ou a opção por umas das vertentes probatórias.

Nesse sentido:
“TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA. MATERIALIDADE E AUTORIA. ANÁLISE APROFUNDADA DA PROVA. INVIABILIDADE.
1. PARA A PRONÚNCIA, BASTA QUE O JUIZ SE CONVENÇA DA EXISTÊNCIA DO CRIME E DE INDÍCIOS DA AUTORIA.
2.NO CASO, A SENTENÇA ESTÁ DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA NA EXISTÊNCIA DE ELEMENTOS POSITIVOS ACERCA DA EXISTÊNCIA DO CRIME E DA RESPECTIVA AUTORIA, IMPONDO SEJA MANTIDA.
3. NÃO DEVE O JUIZ,NA FASE DA PRONÚNCIA, FAZER ANÁLISE APROFUNDADA DA PROVA, SOB PENA DE INFLUENCIAR O JÚRI.
4. RECURSO IMPROVIDO.”
(TJDF, RSE 21078720018070009, Rel. Cesar Loyola, j. 29.03.2007, 1ª Turma Criminal, grifos apostos) 

“RECURSO ESPECIAL. SENTENÇA DE PRONÚNCIA. ADMISSIBILIDADE DA ACUSAÇÃO PÚBLICA. FUNDAMENTAÇÃO. JUDICIUM ACCUSATIONIS E JUDICIUM CAUSAE.
1. A fundamentação das decisões do Poder Judiciário, tal como resulta da letra do inciso IX do artigo 93 da Constituição da República, é condição absoluta de sua validade e, portanto, pressuposto da sua eficácia, substanciando-se na definição suficiente dos fatos e do direito que a sustentam, de modo a certificar a realização da hipótese de incidência da norma e os efeitos dela resultantes.
2. Tal fundamentação, para mais, deve ser deduzida em relação necessária com as questões de direito e de fato postas na pretensão e na sua resistência, dentro dos limites do pedido, não se confundindo, de modo algum, com a simples reprodução de expressões ou termos legais, postos em relação não raramente com fatos e juízos abstratos, inidôneos à incidência da norma invocada.
3. A motivação da pronúncia é condição de sua validade e, não, vício que lhe suprima a eficácia, limitando-a, contudo, em intensão e extensão, a sua natureza específica de juízo de admissibilidade da acusação perante o Tribunal do Júri.
4. Versando sobre o mesmo fato-crime e sobre o mesmo homem-autor, nos processos do júri, o judicium accusationis tem por objeto a admissibilidade da acusação perante o Tribunal Popular e o judicium causae o julgamento dessa acusação por esse Tribunal Popular, do que resulta caracterizar o excesso judicial na pronúncia, usurpação da competência do Tribunal do Júri, a quem compete, constitucionalmente, julgar os crimes dolosos contra a vida (Constituição da República, artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea "d").
5. É vedado ao magistrado, desmerecendo a idoneidade da prova produzida pelo Ministério Público, optar, na fase de pronúncia, por uma das vertentes alternativas da verdade do fato, fundadas pelo conjunto da prova, sufragando tese favorável ao réu, sob pena de, ultrapassando os limites do judicium accusationis, decidir, parcialmente, a causa, excluindo-a, nesse tanto, do julgamento do Tribunal do Júri, seu juiz natural.
6. Tal manifesta violação dos limites do judicium accusationis, em caso de impronúncia ou despronúncia, porque são decisões terminativas, caracteriza rematada violação do artigo 408 do Código de Processo Penal, como é da jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.
7. Recurso conhecido.”
(REsp 147.469/RR, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, SEXTA TURMA, julgado em 03/04/2001, DJ 25/06/2001, p. 251, grifos apostos)

Quanto ao segundo desacerto contido no aresto recorrido, o precedente REsp nº 1245836/RS é contundente ao afirmar a inexigibilidade de prova estreme de dúvidas do dolo de matar, contentando-se a pronúncia com mera possibilidade de sua caracterização, em face do princípio in dubio pro societate, que vigora na fase do judicium accusationis:

Nesse sentido, já se manifestou a Corte Superior:

“RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO. PRONÚNCIA.
DESCLASSIFICAÇÃO. EXISTÊNCIA DE ELEMENTO INDICIÁRIO DO DOLO DE MATAR. CONFRONTO COM AS DEMAIS PROVAS. DESCABIMENTO. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JÚRI.
1. Em razão da competência do Tribunal do Júri e, em especial, pela soberania da qual seus veredictos são dotados, a exclusão do julgamento da causa pelo órgão popular, pela desclassificação da conduta delituosa, poderá ocorrer tão somente quando não houver absolutamente nenhum elemento que indique a presença do dolo de matar, direto ou eventual.
2. Se existir qualquer indício, por menor que seja, que aponte no sentido da possibilidade de existência do animus necandi, deve o acusado ser remetido ao Tribunal do Júri, não cabendo ao magistrado sopesar tal indício com o restante do conjunto probatório, mormente para considerá-lo como insuficiente para demonstrar a existência do dolo, pois nessa fase tem prevalência o princípio do in dubio pro societate.
3. Caso concreto em que, segundo o acórdão recorrido, havia elemento indiciário da possibilidade da existência de intenção de matar, consistente no depoimento da filha da vítima, motivo pelo qual a desclassificação do delito não cabia à Corte de origem.
4. Recurso especial provido para restabelecer a decisão de pronúncia.”
(REsp 1245836/RS, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 19/02/2013, DJe 27/02/2013, grifou-se)

Não é outro o ensinamento de Fernando Capez[13] acerca do tema em debate, in verbis:

“Trata-se de decisão interlocutória mista não terminativa, que encerra a primeira fase do procedimento escalonado. A decisão é meramente processual, e não se admite que o juiz faça um exame aprofundado do mérito, sob pena de se subtrair a competência do Júri.  (...).
Na fase da pronúncia vigora o princípio do in dubio pro societate, uma vez que há mero juízo de suspeita, não de certeza. O juiz verifica apenas se a acusação é viável, deixando o exame mais acurado para os jurados. Somente não serão admitidas acusações manifestamente infundadas, pois há juízo de mera prelibação.”

Por este motivo, sedimentou-se na Corte Cidadã, a orientação de que a verificação do dolo no agir do imputado é matéria que incumbe apenas aos jurados, somente sendo lícito afastá-lo, em sede de juízo de admissibilidade da acusação, quando não houver qualquer indício de agir doloso, o que destoa do caso dos autos. Calha colacionar precedentes da Corte ad quem:

“AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSO PENAL.
TRIBUNAL DO JÚRI. TENTATIVA DE HOMICÍDIO. DESCLASSIFICAÇÃO. LIMITES DA SENTENÇA DE PRONÚNCIA. EXISTÊNCIA DE ELEMENTOS DE CONFIGURAÇÃO DO CRIME CONTRA A VIDA. VERIFICAÇÃO DO ANIMUS NECANDI. INVASÃO DA COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL POPULAR.
1. A desclassificação da infração penal de homicídio tentado qualificado para lesão corporal leve só seria admissível se nenhuma dúvida houvesse quanto à inexistência de dolo. Havendo grau de certeza razoável, isso é fator o bastante para que seja remetida ao Conselho de Sentença a matéria, sob pena de desrespeito à competência ditada pela Constituição Federal. Precedentes.
2. Agravo regimental improvido.”
(AgRg no AgRg no REsp  1313940/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 23/04/2013, DJe 30/04/2013)

“PROCESSO PENAL. RECURSO ESPECIAL. ART. 121, § 2º, II E IV DO CP. DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO DO ART. 121, § 3º, DO MESMO DIPLOMA LEGAL.
I - A desclassificação, por ocasião de "iudicium accusationis", só pode ocorrer quando o seu suporte fático for inquestionável e detectável de plano.
II - Na fase da pronúncia (iudicium accusationis), reconhecida a materialidade do delito, qualquer questionamento ou ambigüidade faz incidir a regra do brocardo "in dubio pro societate".
Recurso provido.”
(REsp 628.700/DF, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 03/08/2004, DJ 30/08/2004, p. 330)

“PENAL E PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO SIMPLES. PRONÚNCIA. TRIBUNAL DO JÚRI. ALEGADA AUSÊNCIA DE DOLO. NECESSIDADE DE REVOLVIMENTO DA PROVA. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO NÃO PROVIDO.
1. O exame da insurgência exposta, no que tange à desclassificação do delito, demanda aprofundado revolvimento do conjunto probatório, já que para que seja reconhecida a culpa consciente ou o dolo eventual, faz-se necessária uma análise minuciosa da conduta do recorrente, procedimento este inviável na via do apelo especial, conforme dicção da Súmula n.º 07 desta Corte Superior.
2. Afirmar se agiu com dolo eventual ou culpa consciente é tarefa que deve ser analisada pela Corte Popular, juiz natural da causa, de acordo com a narrativa dos fatos constantes da denúncia e com o auxílio do conjunto fático-probatório produzido no âmbito do devido processo legal, o que impede a análise do elemento subjetivo de sua conduta por este Sodalício. Precedentes.
3. Agravo regimental não provido.”
(AgRg no AREsp 108.938/PE, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 11/12/2012, DJe 01/02/2013)

Nesse contexto, cristalino o descabimento de ampla incursão da Corte local em matéria reservada à apreciação da Corte Popular. Diante disso, o pleito recursal do Ministério Público é nitidamente vocacionado à preservação do julgamento da matéria pelos juízes naturais da causa, assegurando-se a soberania dos vereditos do Tribunal Popular. Impossível compactuar com os termos do decisum, que tenciona, de todas as formas, frustrar a ampla liberdade de atuação conferida aos jurados, buscando restringi-los - assim como o magistrado singular - às suas concepções pessoais sobre os fatos. Tanto isso é verdade, que o órgão fracionário do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul ingressa em matéria relacionada à aplicação da pena (concurso de crimes), em momento em que sequer se cogita da existência de condenação.

Além da indevida incursão no mérito da demanda, quanto à desclassificação e à despronúncia, diante do exposto nos itens anteriores, a Corte avançou, injustificadamente, em outra seara reservada à análise do Tribunal do Povo, ao consignar que não se faziam presentes as circunstâncias qualificadoras.

Os adminículos probantes mencionados no aresto recorrido e na decisão de pronúncia,  ensejariam, no mínimo, situação de dúvida razoável acerca da caracterização das qualificadoras descritas nos incisos II, III e IV do parágrafo 2º do artigo 121 do CP, o que, por si só, já seria o bastante para justificar a preservação da soberania do Tribunal do Júri, com a submissão das adjetivadoras ao exame do Conselho de Sentença.

Ora, cuidando-se de delito da competência do Tribunal do Júri, a exclusão de qualificadora, em sede de juízo de admissibilidade, retira daquele a possibilidade de julgamento de causa, que lhe pertence por disposição constitucional.

No caso dos autos, como visto, a Câmara julgadora ingressou demasiadamente na análise das provas, sopesando-as de forma indevida, com apreciação valorativa que, flagrantemente, não lhe competia.

A solução preconizada pelo órgão julgador de segundo grau não se coaduna com o brocardo jurídico que orienta as soluções nesta fase processual, o in dubio pro societate. Assim, descabe subtrair dos jurados o exame de circunstância qualificadora quando dela há indícios nos autos - tanto que uma delas foi reconhecida na sentença de pronúncia (recurso que dificultou a defesa da vítima) e, quanto à outra (perigo comum), há voto de divergência -, sob pena de usurpação da competência constitucional do Tribunal do Júri. Dessa forma, existindo vertente probatória a ensejar seu reconhecimento (ou - na pior das hipóteses para a acusação - um mínimo de incerteza) a decisão de pronúncia deve manter as qualificadoras articuladas na denúncia – salvo quando manifestamente improcedentes, nos termos do artigo 413, caput e §1º, do CPP[14], o que inocorre no caso dos autos.

Aliás, o posicionamento adotado pelo Tribunal a quo não se harmoniza com a linha de pensamento desenvolvida pelo Superior Tribunal de Justiça, conforme se depreende dos julgados de ambas as Turmas que compõem a Terceira Seção da Egrégia Corte abaixo transcritos:

“PROCESSUAL PENAL. TRIBUNAL DO JÚRI. HOMICÍDIO QUALIFICADO. PRONÚNCIA. EXCLUSÃO DE QUALIFICADORA. MOTIVO FÚTIL. VALORAÇÃO DAS PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. COMPETÊNCIA DO CONSELHO DE SENTENÇA.
1. No procedimento do Tribunal do Júri, as qualificadoras só podem ser excluídas da pronúncia quando manifestamente improcedentes, isto é, quando completamente destituídas de amparo nos autos, sendo vedado nessa fase valorar as provas para afastar a imputação concretamente apresentada pelo Ministério Público.
2. Havendo dúvidas acerca da real motivação do crime de homicídio qualificado, não há como subtrair-se do Conselho de Sentença, juiz natural dos crimes dolosos contra a vida, o exame da qualificadora do motivo fútil, sob pena de usurpação de sua competência constitucional.
3. Recurso especial provido.”
(REsp 966034/DF, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 27/09/2011, DJe 28/10/2011).

“HABEAS CORPUS. PENAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. PRONÚNCIA. QUALIFICADORAS RECONHECIDAS. MOTIVO FÚTIL E  UTILIZAÇÃO DE MEIO QUE DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA. FUNDAMENTAÇÃO SUFICIENTE. EXCLUSÃO. IMPOSSIBILIDADE. ORDEM DENEGADA.
1. A sentença de pronúncia encerra um mero juízo de admissibilidade, onde examinam-se somente indícios de autoria e materialidade do fato. Assim, deve o magistrado ser comedido ao fundamentá-la, sob pena de invadir a competência do Tribunal do Júri, juiz natural da causa.
2. Na hipótese, ao contrário do alegado na impetração, constata-se que a pronúncia motivou suficientemente a existência de indícios das qualificadoras do homicídio, consistente no motivo fútil e na utilização de meio que dificultou a defesa da vítima, uma vez que se valeu de elementos concretos, coligidos nos autos, dentre os quais, o próprio interrogatório do Paciente.
3. Ademais, esta Corte Superior tem reiteradamente decidido que "somente é cabível a exclusão das qualificadoras na sentença de pronúncia quando manifestamente improcedentes e descabidas, porquanto a decisão acerca da sua caracterização ou não deve ficar a cargo do Conselho de Sentença" (HC 198.945/SP, 5.ª Turma, Rel. Min. JORGE MUSSI, DJe 19/10/2011).
4. Ordem denegada.”
(HC 203173/ES, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 13/12/2011, DJe 19/12/2011)”

“RECURSO ESPECIAL. PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. TENTATIVA DE HOMICÍDIO QUALIFICADO. MOTIVO FÚTIL. PRONÚNCIA. EXCLUSÃO. IMPOSSIBILIDADE. COMPETÊNCIA DO CONSELHO DE SENTENÇA.
1. Esta Corte firmou entendimento de que só podem ser excluídas da sentença de pronúncia as circunstâncias qualificadoras manifestamente improcedentes, sem amparo nos elementos dos autos, uma vez que não se deve usurpar do Tribunal do Júri o pleno exame dos fatos da causa.
2. No caso, observa-se que a Corte Estadual, ao afastar a qualificadora do motivo fútil, emitiu valoração pessoal acerca das circunstâncias do crime, o que não se mostra adequado na fase de pronúncia, por se tratar de mero juízo de admissibilidade da acusação.
3. Destarte, havendo controvérsia sobre a incidência da referida qualificadora, compete ao Conselho de Sentença valorar as provas para deliberar se houve ou não atitude desproporcional entre a conduta do agente e sua motivação, não havendo, pois, como decotar tal qualificadora no presente momento.
4.  Recurso especial provido para, cassando o acórdão hostilizado,restabelecer a pronúncia.” (REsp 780786 / MG - Relator(a) Ministro OG FERNANDES (1139) Órgão Julgador T6 - SEXTA TURMA Data do Julgamento 01/06/2010 Data da Publicação/Fonte DJe 28/06/2010)

Nessa esteira, roborando o que até aqui foi mencionado, os ensinamentos de Adriano Marrey, in Teoria e Prática do Júri, 7ª ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, pp. 287-8:

“Observa-se que ‘sendo o Júri o juiz natural dos crimes dolosos contra a vida, por força de mandamento constitucional, só em casos excepcionais, quando a prova se apresente estreme de dúvidas e quando a versão defensiva se mostre afinada com todos os elementos probatórios, pode ser reconhecida qualquer circunstância que exclua o crime ou isente de pena o acusado.’ (TJSP – RT 533/336)”

No mesmo sentido, preconiza GUILHERME DE SOUZA NUCCI:

“Conforme analisado na nota anterior, o juiz, por ocasião da pronúncia, somente pode afastar a qualificadora que, objetivamente, inexista, mas não a que, subjetivamente, julgar não existir. A análise objetiva dá-se no plano das provas e não do espírito do julgador. Assim, caso a imputação afirme existir ausência de motivo para a atuação do réu e que isso configura o motivo fútil, a verificação objetiva do magistrado deve restringir-se a estar comprovado ou não que há ausência de motivo para o cometimento do homicídio. Caso apure algum motivo, estará desfigurada, objetivamente, a qualificadora da futilidade. Entretanto, se fizer um juízo subjetivo, pode o magistrado entender a ausência de motivo, embora provada nos autos, não constitui futilidade. O fato do Estado-acusação não saber qual é o motivo, não o torna fútil. Ora, esse juízo, é subjetivo, pois depende de apreciação valorativa, motivo pelo qual, segundo cremos, deve ficar ao critério do juiz natural da causa, que é o Tribunal do Júri. Em conclusão: ao juiz cabe analisar, objetivamente, a existência da qualificadora; aos jurados permite-se a análise subjetiva quanto à sua manutenção ou não.”[15] (grifou-se).

Assim sendo, o acórdão recorrido, ao desclassificar a conduta (quanto a cinco dos fatos narrados na exordial), despronunciar o imputado (quanto a um dos fatos) e não reconhecer as qualificadoras do homicídio (motivo fútil, perigo comum e recurso que dificultou a defesa do ofendido), ignorando que a pronúncia não tem lugar apenas quando evidenciada a total ausência de indícios de autoria e prova da materialidade e que somente se pode excluir qualificadora quando evidenciada, de plano, sua improcedência, usurpando a competência constitucionalmente deferida ao Tribunal do Júri, negou vigência ao artigo 121, § 2º, incisos II, III e IV, do Código Penal e ao artigo 413, “caput” e § 1º, do Código de Processo Penal, além de ter contrariado o disposto nos artigos 414 e 418, ambos do Código de Processo Penal.

3.b                                do concurso de crimes (contrariedade ao art. 70 do CP):

Por fim, observa-se que o acórdão, quanto ao concurso de crimes, entendeu tratar-se de concurso formal próprio, pois os fatos foram praticados por meio de uma só ação e o réu não possuía desígnios autônomos.

Ocorre, mais uma vez,  que os julgadores deixaram de observar a regra que determina impossibilidade de incursão aprofundada na prova, cumprindo advertir estar a questão referente ao concurso de crimes intrinsecamente ligada à análise do dolo do agente – tarefa que, como antes sinalado, incumbe aos integrantes do Tribunal Popular.

Corroborando o anteriormente asseverado, traz-se à lume o seguinte precedente da Corte Cidadã:

“HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. JÚRI. INDICAÇÃO DE CAUSA ESPECIAL DE AUMENTO DE PENA E CONCURSO DE CRIMES NA SENTENÇA DE PRONÚNCIA. NULIDADE. INOCORRÊNCIA.
1. A sentença de pronúncia é mero juízo de admissibilidade da acusação, com o único propósito de submeter o acusado a julgamento pelo Tribunal do Júri, daí por que, em sua motivação, o juiz deve proclamar apenas a existência do crime e de indícios suficientes de autoria, além das circunstâncias qualificadoras do crime (artigo 416 do Código de Processo Penal), sem, contudo, aprofundar-se no exame das provas constantes dos autos, sendo-lhe vedado fazer outras referências às circunstâncias do crime, tais como: as agravantes, as atenuantes, as causas de aumento e de diminuição de pena e o concurso de crimes (artigo 408 do Código de Processo Penal).
2. Em se tratando de decisão cuja natureza é meramente processual, não produzindo a res judicata, a indicação, na pronúncia, de causa especial de aumento de pena e de concurso material de crimes não constitui hipótese de nulidade absoluta. Precedentes.
3. Ordem denegada.
(HC 12.048/RJ, Rel. Ministro HAMILTON CARVALHIDO, SEXTA TURMA, julgado em 06/02/2001, DJ 25/06/2001, p. 239, grifos apostos)

Nesse viés, não é demais destacar que o STJ, em caso análogo - em que mediante uma única ação, o réu ceifou a vida de várias pessoas -, reconheceu o concurso formal impróprio, dada a caracterização de desígnios autônomos. Confira-se a ementa deste julgado:

“PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ARTS. 121, § 2º, INCISOS I, III E IV E ART. 121, § 2º, INCISOS I, III E IV C/C 14, INCISO II, TODOS DO CÓDIGO PENAL. JÚRI. ANULAÇÃO DO JULGAMENTO. DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. DILAÇÃO PROBATÓRIA.
IMPOSSIBILIDADE. DOSIMETRIA DA PENA. CONFISSÃO ESPONTÂNEA. ATENUANTE AFASTADA PELO CONSELHO DE SENTENÇA. CONCURSO FORMAL IMPRÓPRIO. ÚNICA CONDUTA. DESÍGNIOS AUTÔNOMOS. ALEGADA DEFICIÊNCIA NA FIXAÇÃO DA PENA-BASE. CONCURSO DE CRIMES. TESES APRESENTADAS MAS NÃO APRECIADAS PELO TRIBUNAL A QUO. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA.
I - Na espécie, as provas delineadas no v. acórdão atacado sustentam a conclusão alcançada pelos jurados, não se qualificando, portanto, como sendo manifestamente contrária à prova dos autos. Qualquer entendimento diverso exigiria incursão em matéria probatória, medida incompatível com a via eleita.
II - Revela-se inviável, neste momento, o reconhecimento de circunstância atenuante que foi expressamente rechaçada pelo Conselho de Sentença.
III - "O efeito devolutivo da apelação contra decisões do Júri é adstrito aos fundamentos de sua interposição." (Enunciado n.º 713 da Súmula do Pretório Excelso).
IV - Constatada, em Plenário do Júri, a ocorrência de desígnios autônomos do paciente para obtenção dos resultados alcançados, face sua conduta de atear fogo em ônibus, impedindo a saída de cada passageiro da aludida condução pública através da restrição da liberdade do motorista do coletivo, mister o reconhecimento do concurso formal impróprio.
V - Esta Corte tem entendido, como regra geral, que é possível, em habeas corpus, a sua manifestação acerca de matéria não tratada nas razões da apelação e/ou não enfrentadas pelo v. acórdão que a julgou, em razão da amplitude do efeito devolutivo daquele recurso.
Entretanto, em se tratando de apelação interposta contra decisum do Tribunal do Júri, essa análise não é autorizada. Como o efeito devolutivo da apelação, nesses casos, é restrito ao que se alegou na petição de interposição recursal, é defeso ao STJ se manifestar sobre teses não enfrentadas pelo v. acórdão reprochado (Precedentes desta Corte e do Pretório Excelso).
Habeas Corpus denegado.
(HC 132.870/RJ, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 15/06/2010, DJe 02/08/2010) – grifou-se.

Dessa forma, além da impropriedade técnica na apreciação detalhada da prova acerca do concurso de crimes, tem-se, novamente, a inviabilidade de supressão da competência do Tribunal do Júri para avaliação da presença de desígnios autônomos na conduta do réu.

Outrossim, há que se considerar que sequer é adequada a apreciação dessa matéria na presente fase procedimental, por ser intrinsecamente relacionada à aplicação da pena e não ser objeto de quesitação. Ora, se o feito se encontra na etapa pertinente à admissibilidade da acusação, como falar-se em matéria atinente à dosagem da sanção, quando sequer condenação houve?

Nesse sentido, Renato Brasileiro de Lima explica que as “causas de aumento de pena também devem constar na pronúncia. Apesar de o art. 413, §1º, do CPP, dispor que a pronúncia fará referência às causas de aumento de pena, sem distinguir se isto abrange tanto aquelas previstas na parte geral [...] quanto as da parte especial do Código Penal [...] é dominante o entendimento na doutrina e na jurisprudência que só devem constar da pronúncia aquelas inseridas na parte especial do Código Penal, já que aquelas constantes da parte geral não fazem parte do tipo básico ou derivado da conduta delituosa imputada, tendo como objetivo precípuo apenas auxiliar o juiz por ocasião da fixação da pena[16].

Portanto, evidente a inadequação do momento processual para análise da matéria, devendo tal aspecto ser reservado à análise do juiz-presidente do Tribunal do Júri, por ocasião do julgamento em plenário, do que resulta contrariedade ao artigo 413 do CPP.

3.c.                               da negativa de vigência ao artigo 619 do CPP

 Apontadas omissões quanto ao enfrentamento de questões cruciais ao deslinde da controvérsia, e tendo o órgão fracionário nelas persistido quando do julgamento dos embargos declaratórios, impõe-se reconhecer, subsidiariamente e na hipótese de o Superior Tribunal de Justiça considerar ausente o prequestionamento, a violação ao artigo 619 do Código de Processo Penal, já que a Corte Estadual, ao não analisar efetivamente a matéria, denegou a devida prestação jurisdicional ao Ministério Público.

Isso porque o Ministério Público manejou embargos de declaração objetivando, além de transpor eventual óbice relativo ao prequestionamento, a manifestação da Corte Estadual sobre questões relevantes ao deslinde da controvérsia, já que o julgado fora omisso quanto: a) à impossibilidade de aprofundada análise da prova em sede de pronúncia, com a opção por uma das vertentes probatórias para operar a despronúncia, a desclassificação para delito diverso  da competência do Júri e a opção pelo concurso formal próprio; e b) à vedação de exclusão de qualificadora, em sede de juízo de admissibilidade da acusação, quando não se mostrar absolutamente divorciada do substrato probatório coligido.

Os pontos suscitados eram, por conseguinte, aptos a ensejar inversão do decidido, mas, no entanto, foram ignorados pela Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que desacolheu os aclaratórios opostos, limitando-se a reiterar os fundamentos do acórdão embargado, a pretexto de que o Parquet pretendia apenas a rediscussão da matéria.

4.                                                    DO PEDIDO:

Pelo exposto, o Ministério Público DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL propugna seja admitido o presente recurso especial e, ao final, seja integralmente provido na Superior Instância, ao efeito de reformar o decisum proferido pela Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, ao efeito de que Ricardo José Neis seja pronunciado, nos termos da exordial, como incurso nas sanções do art. 121, §2º, incisos I, II e III, na forma do artigo 14, inciso II, ambos do Código Penal, afastando-se a determinação de aplicação do concurso formal próprio. Subsidiariamente, postula-se a anulação do acórdão dos embargos de declaração, a fim de que sejam enfrentados os aspectos suscitados.

Por fim, solicita-se que a intimação pessoal aos signatários, no presente feito, se faça na PROCURADORIA de Recursos do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, na Avenida Aureliano de Figueiredo Pinto, 80, Torre Norte, 12º andar, Bairro Praia de Belas, Porto Alegre – RS, 90050-190, Telefone: (51) 3295-2137 (artigo 41, inciso IV, da Lei n.º 8.625, de 12 de fevereiro de 1993 – Lei Orgânica Nacional do Ministério Público).

Porto Alegre, 23 de maio de 2013.



Mário Cavalheiro Lisboa,

Procurador de Justiça.




IVORY COELHO NETO,
Subprocurador-Geral de Justiça para Assuntos Jurídicos.[17]
GR/TD



[1] Portaria nº 706/2011
[2] PRADO, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal: jurisprudência; conexões lógicas com os vários ramos do direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunal, 2013, pag. 435.
[3] NUCCI, Guilherme, de Souza. Código penal comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 640.
[4] Publio Siro, 85 a.C/43 a.C.
[5]Não assiste razão ao Ministério Público, pois não ficou minimamente demonstrada a circunstância qualificadora. A denúncia descreve que o réu queria imprimir velocidade em seu veículo, encontrando as vítimas pelo caminho, demonstrando extremo egoísmo e individualismo.
Ora, a prova produzida não corrobora a tese. Conforme se verificou dos depoimentos das vítimas e outras testemunhas teria havido uma discussão entre réu e vítimas, porquanto estas estavam impedindo a passagem do seu automóvel na pista de rolamento. Logo, não se constata a intenção de apenas ‘imprimir velocidade em seu veículo’.
Correto, pois, o afastamento da qualificadora.” (fl. 1943v.)
[6] Código Penal Comentado, 10ª Ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 610/611.
[7] TJRS. Recurso em Sentido Estrito Nº 70041206368. Terceira Câmara Criminal. relator Des. Odone Sanguiné. julgado em 07/04/2011.
[8] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial, volume 2. 5 ed rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2006. p. 72.
[9] CAPEZ, Fernando. PRADO, Stela. Código Penal Comentado. 3 ed rev. e atual. - São Paulo: Saraiva, 2012. p. 252.

[10] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado – 10. Ed. ver. atual. e ampl. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2006. P. 614.
[11] “Prova-se tudo o que se quer, e a verdadeira dificuldade está em saber o que se quer provar (Émile-Auguste  Chartier).
[12] A decisão examina e interpreta depoimentos e demais elementos de convicção, inclusive alguns decorrentes de concepções pessoais, tecendo diversos juízos de valor.
[13] In, Curso de Processo Penal, 12º edição, editora Saraiva, 2005, p. 606.
[14] Art. 413.  O juiz, fundamentadamente, pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação. (Redação dada pela Lei nº 11.689, de 2008)
§ 1º A fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, devendo o juiz declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena. (Incluído pela Lei nº 11.689, de 2008)
[...]
[15] In “Código de Processo Penal Comentado”. 3ª edição. Ed. Revista dos Tribunais. São Paulo. 2004. P. 662.
[16] Lima, Renato Brasileiro. Manual de processo penal, vol. II. Niterói, RJ: Impetus, 2012, p. 419.
[17] Portaria nº 706/2011


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