(*) Por Cláudio Brito,
Jornalista
Publicado originalmente no Jornal Zero Hora
O Supremo Tribunal Federal não legalizou o aborto.
Reconheceu que a antecipação terapêutica do parto, ou a interrupção da gravidez
em casos de fetos anencéfalos, é fato que não importa ao Direito Penal, é
atípico. Impedir a expulsão antecipada de um feto in- viável descumpriria
preceitos fundamentais, razão da procedência da ação iniciada há oito anos por
provocação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde.
O ministro Celso de Mello resumiu seu voto lembrando que não
se pode falar em aborto nesses casos, pois “o feto anencéfalo não é um ser
humano vivo, porque não tem cérebro e nunca vai desenvolver atividade
cerebral”. Se a ciência médica e a legislação definem o fim da vida pela morte
cerebral, não há vida ante a ausência de cérebro. Não há, portanto, bem
jurídico a ser tutelado pelos dispositivos legais que punem o aborto. Eis o
caminho bem claro percorrido pelos oito ministros vencedores no julgamento.
Outro voto esclarecedor foi o de Carlos Ayres Britto, futuro presidente do STF.
Fez poesia, foi comovente e não deixou de ser o grande jurista que é, o que se
confirma com sua frase nesta página, selecionada como uma das sentenças da
semana. A gaúcha Rosa Weber enfocou seu voto no direito da mulher,
adequadamente: “A gestante deve ficar livre para optar sobre o futuro de sua gestação
do feto anencéfalo”. Segundo ela, trata-se da preservação da autonomia da
gestante. Respeitá-la implica respeitar um dos princípios maiores dos direitos,
o da dignidade da pessoa humana. Impedi-la de escolher atentaria contra esse e
outros direitos fundamentais, todos albergados por nossa Constituição,
abordagem que levou o tema ao Supremo.
O advogado gaúcho Cezar Roberto Bitencourt, em seu Tratado
de Direito Penal, ensinou que o feto ou o embrião tem vida própria e recebe
tratamento autônomo da ordem jurídica, pela proteção que a lei concede ao bem
jurídico, que é a vida do ser humano em formação. “No entanto – afirma
Bitencourt – a antecipação consentida do parto na hipótese de comprovada
gravidez de feto anencéfalo não afeta esse bem jurídico que a ordem
constitucional protege.”
As conclusões que foram majoritárias no julgamento seguiram
a mesma trilha. Afastada a ideia de bem jurídico e sua tutela, deu-se aos
artigos do Código Penal que tratam do aborto a interpretação conforme a
Constituição para proclamar a atipicidade da conduta da mulher que escolhe o
caminho da interrupção terapêutica da gravidez de feto sem cérebro.
Marco Aurélio, relator e autor do voto condutor, Joaquim
Barbosa, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Gilmar Mendes, alternando argumentos,
construíram com os demais, que já citei, uma decisão inspiradora de reforma
legislativa, com certeza. Desnecessária, pois basta o que já fez o tribunal
para a segurança jurídica indispensável, mas, se bem escrita, em nada nos
atrapalhará.
O governo tomou as primeiras providências, credenciando
hospitais da rede pública para o atendimento dos casos de fetos anencéfalos.
Cumprindo um comando do julgamento, o Conselho Federal de Medicina, em dois
meses, disciplinará os procedimentos médicos indispensáveis aos diagnósticos e
à interrupção da gravidez. Dispensada qualquer providência judicial. A gestante
ajustará tudo com os médicos, que não dependerão de qualquer autorização
diferente das regras do exercício profissional. Tudo isso apenas será uma
faculdade posta à mercê da gestante.
Caberá a ela decidir sobre a expulsão do
feto sem cérebro, cuja vida extrauterina é inviável, segundo comprovação
médico-pericial. As razões de Ricardo Lewandowski e de Cezar Peluso
fundamentaram-se em respeitáveis argumentos jurídicos para os dois votos
discrepantes. Visão dogmática e inflexível, no entanto.
Fique bem claro, o Supremo não autorizou o aborto de
anencéfalos. O Supremo explicou que a interrupção de gravidez de anencéfalo não
é aborto!
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