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domingo, abril 15

Não é aborto! (*)

(*) Por Cláudio Brito, Jornalista

Publicado originalmente no Jornal Zero Hora

O Supremo Tribunal Federal não legalizou o aborto. Reconheceu que a antecipação terapêutica do parto, ou a interrupção da gravidez em casos de fetos anencéfalos, é fato que não importa ao Direito Penal, é atípico. Impedir a expulsão antecipada de um feto in- viável descumpriria preceitos fundamentais, razão da procedência da ação iniciada há oito anos por provocação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde.

O ministro Celso de Mello resumiu seu voto lembrando que não se pode falar em aborto nesses casos, pois “o feto anencéfalo não é um ser humano vivo, porque não tem cérebro e nunca vai desenvolver atividade cerebral”. Se a ciência médica e a legislação definem o fim da vida pela morte cerebral, não há vida ante a ausência de cérebro. Não há, portanto, bem jurídico a ser tutelado pelos dispositivos legais que punem o aborto. Eis o caminho bem claro percorrido pelos oito ministros vencedores no julgamento. Outro voto esclarecedor foi o de Carlos Ayres Britto, futuro presidente do STF. 

Fez poesia, foi comovente e não deixou de ser o grande jurista que é, o que se confirma com sua frase nesta página, selecionada como uma das sentenças da semana. A gaúcha Rosa Weber enfocou seu voto no direito da mulher, adequadamente: “A gestante deve ficar livre para optar sobre o futuro de sua gestação do feto anencéfalo”. Segundo ela, trata-se da preservação da autonomia da gestante. Respeitá-la implica respeitar um dos princípios maiores dos direitos, o da dignidade da pessoa humana. Impedi-la de escolher atentaria contra esse e outros direitos fundamentais, todos albergados por nossa Constituição, abordagem que levou o tema ao Supremo.

O advogado gaúcho Cezar Roberto Bitencourt, em seu Tratado de Direito Penal, ensinou que o feto ou o embrião tem vida própria e recebe tratamento autônomo da ordem jurídica, pela proteção que a lei concede ao bem jurídico, que é a vida do ser humano em formação. “No entanto – afirma Bitencourt – a antecipação consentida do parto na hipótese de comprovada gravidez de feto anencéfalo não afeta esse bem jurídico que a ordem constitucional protege.”

As conclusões que foram majoritárias no julgamento seguiram a mesma trilha. Afastada a ideia de bem jurídico e sua tutela, deu-se aos artigos do Código Penal que tratam do aborto a interpretação conforme a Constituição para proclamar a atipicidade da conduta da mulher que escolhe o caminho da interrupção terapêutica da gravidez de feto sem cérebro.

Marco Aurélio, relator e autor do voto condutor, Joaquim Barbosa, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Gilmar Mendes, alternando argumentos, construíram com os demais, que já citei, uma decisão inspiradora de reforma legislativa, com certeza. Desnecessária, pois basta o que já fez o tribunal para a segurança jurídica indispensável, mas, se bem escrita, em nada nos atrapalhará.

O governo tomou as primeiras providências, credenciando hospitais da rede pública para o atendimento dos casos de fetos anencéfalos. Cumprindo um comando do julgamento, o Conselho Federal de Medicina, em dois meses, disciplinará os procedimentos médicos indispensáveis aos diagnósticos e à interrupção da gravidez. Dispensada qualquer providência judicial. A gestante ajustará tudo com os médicos, que não dependerão de qualquer autorização diferente das regras do exercício profissional. Tudo isso apenas será uma faculdade posta à mercê da gestante. 

Caberá a ela decidir sobre a expulsão do feto sem cérebro, cuja vida extrauterina é inviável, segundo comprovação médico-pericial. As razões de Ricardo Lewandowski e de Cezar Peluso fundamentaram-se em respeitáveis argumentos jurídicos para os dois votos discrepantes. Visão dogmática e inflexível, no entanto.

Fique bem claro, o Supremo não autorizou o aborto de anencéfalos. O Supremo explicou que a interrupção de gravidez de anencéfalo não é aborto!

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