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terça-feira, fevereiro 14

Sobre o ‘ultraje público ao pudor’: a propósito do PL que pretende a exclusão do crime do CPB


Embora a Lei 12015/09 tenha promovido reformas profundas no Título VI do Código Penal Brasileiro, que trata da proteção à dignidade sexual, não introduziu qualquer alteração no Capítulo VI deste mesmo título, denominado “Do ultraje público ao pudor”, reparo esse que o PL 3025/11 do Deputado Carlos Bezerra pretende promover.

Assim, ainda que o Título VI disponha sobre os crimes que atentam contra a dignidade sexual, permaneceram integrando o CPB os delitos que ofendem o pudor público, traduzido pela moral e os bons costumes, quais sejam o ato obsceno (artigo 233) e o escrito ou objeto obsceno (artigo 234).

Segundo o artigo 233, todo aquele que praticar um ato obsceno, impudico, de apelo sexual em sentido amplo, de modo a ofender o sentimento médio de pudor, em lugar público, ou aberto ou exposto ao público, incide na pena de detenção de 3(três) meses a 1(um) ano.

Em atenção às circunstâncias elementares do tipo penal do art. 233, configuraria objetivamente o ato obsceno toda a conduta consubstanciada na exibição dos órgãos genitais, na masturbação, no andar e correr despido ou seminu, assim, também, na micção pública e, até mesmo, na prática de atos de apelo sexual.  Do ponto de vista subjetivo, o tipo está a exigir a vontade de praticar o ato de conteúdo obsceno, sem que seja necessária qualquer finalidade particular. Por ser crime formal e de perigo, ele existirá se o for praticado por gracejo, achincalhe, ingenuidade, vingança, desprezo ou com fins eróticos ou lascivos, consumando-se com a prática do ato indecente, porque bastará, para isso, ser detentor de uma potencialidade escandalosa.

Embora a jurisprudência seja farta em situações de responsabilidade penal por ato obsceno a quem exibe os órgãos sexuais em passeatas ou protestos, campanhas publicitárias ou em representações teatrais, fotográficas ou cinematográficas, é preciso avaliar sobre a real caracterização da ofensa ao pudor público, mais ainda por se tratar, na espécie, de crime de menor potencial ofensivo.

É que não se pode desconsiderar o contexto em que a exibição dos órgãos sexuais ou das partes pudendas ocorre. Por isso, o exame objetivo do caso concreto poderá demonstrar que a conduta está inserida no contexto da liberdade de expressão, ainda que possa parecer, aos olhos de alguns, uma conduta deselegante, inadequada ou deseducada. 

Por outro lado, o artigo 234 ao prever o escrito ou objeto obsceno  considera crime  fazer, importar, exportar, adquirir ou ter sob sua guarda escrito , desenho, pintura, estampa ou qualquer objeto obsceno, além de outras condutas assimiladas, previstas nas alíneas ‘a’, ‘b’ e ‘c’ do seu parágrafo único.

Sobre esse crime, inclusive, a doutrina também  tem sustentado a sua inconstitucionalidade, eis que a previsão legal fere, indubitavelmente, a liberdade de expressão, especialmente aquela que se evidencia em forma de arte e, também, a liberdade de comunicação, numa afronta ao artigo 5º, incisos IV e IX  da Constituição Federal.

Além disso, se escritos, estampas, objetos pinturas e desenhos fossem, de verdade, considerados ofensivos por sua obscenidade – por eróticos, pornográficos ou lascivos -  o que pensar sobre o funcionamento dos sex-shops, das publicações eróticas (livros e revistas), ou da audições radiofônicas e telemáticas de conteúdo sexual? Ou dos filmes e produções teatrais de fundo erótico?

Pois pela legislação penal – fosse ela verdadeiramente aplicada tal qual como se prevê – sempre haveria crime e, consequentemente, responsabilidade penal.

Há de se pensar que a sociedade contemporânea dispõe de outros mecanismos, mais bem adequados do que o Direito Penal – como a própria crítica – para esse tipo de situação. Tudo isso considerado e, ainda, levando-se em conta o Princípio da Intervenção Mínima, talvez seja indicado dispensar-se o enquadramento penal nessas situações, até porque pessoas adultas não precisam da tutela do Estado para a escolha sobre ter, ou não, acesso à pornografia e, no tocante às crianças e aos adolescentes, o Estatuto (ECA) promove essa proteção.

Se a lei 12015/09 pecou por omissão quanto à necessária reforma deste título do Código Penal Brasileiro, o Projeto de Lei chega em bom hora.

Leia: http://profeanaclaudialucas.blogspot.com/2012/02/proposta-retira-ultraje-publico-ao.html

3 comentários:

Rafael Vitola Brodbeck disse...

Bom comentário, professora. Parabéns.

Aproveito, na mesma linha, para mandar umas poucas linhas que escrevi sobre outro PL. Se puder e quiser publicar, fique à vontade.

Comentário sobre o PL 1688/11

Eis o texto do Projeto de Lei:

"Acrescenta artigo ao Código de Defesa do Consumidor, tipificar a conduta de produzir, a importar e comercializar brinquedos sem observar os imperativos de segurança estabelecidos pela autoridade competente.

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1.º Esta Lei acrescenta artigo à Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, para tipificar a conduta de produzir, a importar e comercializar brinquedos sem observar os imperativos de segurança estabelecidos pela autoridade competente.

Art. 2.º A Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, passa a vigorar acrescida do artigo 65-A nos termos seguintes.

Art. 65-A. Importar e comercializar brinquedos, ainda que artesanal, sem observar os imperativos de segurança estabelecidos pela autoridade competente.

Pena: detenção de seis meses a dois anos e multa.

Parágrafo único. As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à lesão corporal e à morte.

Art. 3.º Esta lei entra em vigor seis meses após a sua publicação.

JUSTIFICAÇÃO DO PROJETO:

O Código de Defesa do Consumidor possui normas de proteção relacionadas à informação de periculosidade e à prestação de serviços perigosos. Porém, é omisso quanto ao oferecimento de brinquedos perigosos para crianças.

Por encontrar-se em desenvolvimento, não basta para a criança a informação sobre a periculosidade do produto, pois muitas sequer foram alfabetizadas.

Tampouco a vigilância dos pais ou de quem lhes substituir nessa função é suficiente para evitar um acidente grave com brinquedos que apenas aparentemente não são perigosos.

A preocupação é, sobretudo, com relação a brinquedos fabricados de maneira clandestina para parquinhos, os quais não seguem nenhum parâmetro de segurança e são responsáveis por um grande número de ocorrências.

O Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial - INMETRO noticia em seu sítio acidentes com imãs de bonecas, que uma vez acessado pelas crianças, são levados diretamente à boca. Em razão desses acidentes, o INMETRO publicou Portaria estabelecendo mais rigor na certificação de brinquedos (Portaria INMETRO 326, de 24 de agosto de 2007). Cabe lembrar que a exigência de certificação de brinquedos iniciou com a Portaria INMETRO 177, de 1988.

Porém, a certificação somente será eficaz se houver uma sanção adequada para os infratores. São, portanto, essas as razões pelas quais solicito aos nobres Pares apoio a essa proposição.

Sala das Sessões, 2011.

Fonte: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=510334"

Penso ser mais um ato de conteúdo fascista e totalitário do Parlamento brasileiro, rumo a um Estado Policial. Trata-se de uma profunda ferida aos princípios da subsidiariedade, da proporcionalidadade, da seletividade, da ofensividade, da fragmentariedade, do conteúdo material de crime, e da intervenção mínima.

(CONT.)

Rafael Vitola Brodbeck disse...

(PARTE 2)


Que seja ilícito administrativo vender brinquedos só porque não ostentam um selo de um burocrata (no caso, o INMETRO) já é uma intromissão absurda do Estado. Se o PL for aprovado, todavia, algo ainda pior ocorrerá: tornar-se-á crime! Ou seja, o artesão que faz um carrinho de madeira pra vender na praça será comparado a um estuprador, a um homicida, a um traficante...

Essa maximização de condutas delitivas gera um sentimento de que, se tudo é crime, então o crime não é tão grave. Se nivela por baixo. O crime deixa de ser algo que repugna à sociedade por sua torpeza, para se transformar em qualquer ação que alguns burocratas, encastelados em seus gabinetes, sem contato com a realidade, pensam que deva ser tipificado como tal.

Que falta faz a leitura e o estudo mais aprofundado de Günther Jakobs por nossos representantes!

Comungo da teoria de que o Estado deva classificar como crime somente aquilo que não puder resolver em outras instâncias morais e jurídicas. O crime é a ultima ratio. Deve haver punição forte para o que é, de fato, delito, e tolerância zero para quem o pratica, mas, ao mesmo tempo, uma diminuição drástica da lista de tipos penais.

E isso que estamos em plena instalação da comissão que reformará o Código Penal, retirando tipos criminais anacrônicos. Essa aprovação pela Câmara está na contramão do que virá como novo diploma penal material.

(CONT.)

Rafael Vitola Brodbeck disse...

(PARTE 3 - FINAL)


O Direito Penal medieval (o escolástico, católico, não o bárbaro, germânico, de logo após a queda de Roma) bem poderia fazer esses deputados entenderem que a pena pode ser máxima, mas o rol de tipos mínimo.

A crença de que o Direito Penal deve reformar a sociedade parte de um conceito totalitário de se criar o "homem novo" de cima para baixo, de fora para dentro, em nítida contraposição à liberdade humana, ademais. E pretende criar também um "mundo novo" de teor milenarista e messiânico, próprio das ideologias, como o nazismo, o socialismo e o liberalismo, todas bebedoras na mesma fonte materialista.

Esse politicamento incorreto está emasculando a sociedade, e desvirilizando os homens. Eu, quando criança, vivia me engasgando com pecinhas pequenas de Playmobil, Falcon, Comandos em Ação, e nunca meus pais pensaram em processar quem quer que seja. Isso é uma fatalidade: com crianças, acontece. Cabe aos pais vigiar, e mesmo vigiando pode ocorrer. Se o que for perigoso for proibido e a ele cominada sanção criminal, ter garfo e faca em casa, dirigir automóvel, andar na rua à noite serão considerados, em breve, delitos igualmente.